Órgão se reorganiza para absorver o aprendizado da leitura e da escrita, revela pesquisa da Rede Sarah
Renato Grandelle
A alfabetização exige adaptações do cérebro, e essas mudanças são as mesmas até entre os que só aprendem a ler e escrever quando adultos. As constatações, publicadas esta semana na revista "Science", são fruto de um estudo inédito da Rede Sarah, com o apoio de instituições de Portugal, França e Bélgica.
Cultura causou mudança na organização cerebral
A equipe internacional obteve, pela primeira vez, imagens que retratam o impacto no cérebro do aprendizado da leitura e escrita. Como estes processos existem há relativamente pouco tempo - têm cerca de 5 mil anos -, ainda não influenciaram a evolução genética do órgão.
- O cérebro recicla estruturas antigas para atender às novas demandas culturais - explica Lucia Willadino Braga, pesquisadora do Centro Internacional de Neurociências e presidente da Rede Sarah. - Aprender a ler e escrever provoca uma modificação maciça na s redes neuronais ligadas à visão e à linguagem.
Ocorre, então, uma realocação de recursos - ou seja, uma reciclagem de regiões cerebrais pré-existentes e reservadas a outras funções.
O aprendizado das palavras escritas ocupa uma área do hemisfério esquerdo do cérebro, até então usada para o reconhecimento de objetos e faces. Este tipo de ativação, então, desloca-se levemente para o lado direito do órgão. Ainda não há provas de que a alfabetização diminuiria a capacidade de identificar estas imagens.
Um diferencial do estudo foi a participação de dez voluntários analfabetos. De acordo com Lucia, a análise das funções cerebrais costuma ser realizada quase exclusivamente com pessoas alfabetizadas na primeira infância.
- Além de 31 pessoas que aprenderam a ler ainda crianças, tivemos a oportunidade de estudar o cérebro de voluntários que tiveram outras experiências, como analfabetos e 22 pessoas que só aprenderam a ler na idade adulta - revela a pesquisadora. - Queríamos saber como são os processos de aprendizado entre quem teve essa experiência tardiamente.
Resposta da ressonância magnética: os efeitos da alfabetização são os mesmos em todos, independentemente da época em que ela foi realizada. Os circuitos envolvidos com a leitura não têm, portanto, um período crítico - eles permanecem plásticos durante a vida inteira.
- As redes acionadas são exatamente as mesmas - destaca Lucia. - O que vai diferenciar o cérebro, permitindo, por exemplo, que leia mais palavras em um determinado tempo, é apenas a quantidade de treino. A época em que a pessoa foi alfabetizada não tem qualquer influência sobre esta habilidade.
A educação provoca mudanças maciças nas áreas cerebrais. Aprender a ler aumenta os estímulos visuais - inclusive na área visual primária do córtex, responsável por perceber fatores como cor, profundidade e distância.
O córtex auditivo também é mais "ativado". Quem sabe ler e escrever distingue jogos de linguagem que passam despercebidos pelos analfabetos, como a supressão de fonemas em uma palavra.
Benefícios vão da comunicação à autoestima
Quem sabe escrever amplia os limites do tratamento de linguagem, antes restrito à modalidade auditiva. A conexão entre fala e escrita aumenta a capacidade de comunicação, com benefícios muito maiores do que a ciência pode medir.
- A aquisição da leitura tem uma repercussão muito importante na qualidade de vida, independência, autoestima e cidadania. Esperamos que os resultados de nossa pesquisa estimulem políticas públicas da área de educação voltadas a jovens e adultos. Afinal, o país ainda tem 14 milhões de analfabetos - lembra Lucia.
Mesmo com esse levantamento, um cérebro que não passou por educação formal constitui ainda um território inexplor ado. Não se sabe, por exemplo, como ele aciona a memória, faz cálculos ou toma decisões.
Fonte: O Globo